O cruel mercado infantil de talentos na TV

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016


Por: 

Maria Inês de C. Delorme*
Ontem mesmo, uma pessoa veio comentar sobre uma criança de 10 anos, que estaria muito triste porque “ele cantou uma música lá no local e horário marcados para o The Voice Kids, mas não foi selecionado, já que ninguém havia telefonado para ele, embora ele cante lindo, afinado e com um jeito lindo”.  Essa é a milésima vez que sentamos no banco da praça refletindo, preocupadas com essa nova tendência brasileira de levar as crianças para campeonatos de talentos, na televisão.  E não são poucos. Continuamos atentos depois do caso Valentina – do MasterChef Junior – e as preocupações permanecem intensas. Até agora não sabemos se as crianças recebem algum retorno, no caso de não terem sido selecionadas, o que não resolve, mas ameniza.
Bem, é preciso dizer que entendemos como maravilhoso o fato de as crianças cozinharem e que cantarem, as vezes até ao mesmo tempo, para si mesmos e para os outros. Isso por si só é um ganho enorme para a cultura e para a vida de todos.
É comum encontrarmos crianças talentosas, praticamente vocacionadas desde cedo, aos olhos dos adultos, em diferentes aspectos: música, pintura, desenho, construções com objetos, colagens, costura, bordado e, também, para os esportes em geral. Em tese, essas habilidades precoces – ou ainda, talentos – mantêm-se presentes por toda a vida, podendo ter sido mais ou menos desenvolvidos, o que pode vir a ter relação com sua futura atividade profissional, ou não. Às vezes, o trabalho na vida adulta tem referência direta com esses talentos, às vezes, eles viram um hobby e, também, em alguns casos, infelizmente adormecem e ficam sem expressão.
O que acontece no caso das crianças é que existe um investimento enorme dos adultos para que eles definam desde cedo suas profissões futuras e que ainda, se possível, se tornem um expoente de sucesso e de dinheiro, termos que na nossa cultura são quase sinônimos, como redenção para famílias inteiras que não conseguiram alcançar por si sós o tal binômio que atende ao mercado. Mercado equivocado e frustrante por atrelar sucesso a dinheiro, investindo assim na cultura material da felicidade, apenas e maciçamente. Todos precisamos de muito mais para alcançar momentos de felicidade.
Esse investimento dos adultos aparece em inúmeros aspectos, nas artes em geral, no cinema, no teatro, também quando as crianças têm corpos magros e altura. Essas habilidades expressas ainda na infância, que estamos chamando aqui também de talentos, não devem ter relação com o mercado que transforma tudo em objeto de compra e venda, mas o que a televisão produz é exatamente isso. Sem cuidado e senso crítico, a televisão, mídia que diverte e educa, pode ser devoradora de audiências e assim devorar, de garfo e faca, aqueles que nela trabalham. No caso das crianças, esse sucesso rápido, gerado apenas pela visibilidade em 65% dos lares brasileiros, já pode ser responsável por expectativas e fantasias de grandeza que são cruéis, como já aconteceu com tantas crianças que desde cedo foram sucesso “na telinha”. Não faltam exemplos. A televisão é patrocinada e todos sabem que, no cenário audiovisual, os animais, as crianças e os idosos “vendem”, reúnem público e criam audiência para o mercado adulto. Isso interessa à televisão como indústria do consumo. Não são poucos os adultos que se emocionam diante da Tv, ao saber da vida pessoal dessas crianças e, no caso da música, ao ouvi-las cantar de modo tão singelo. É lindo mesmo.
Sob a ótica das crianças, isso pode ser extremamente perigoso, por várias questões diferenciadas e interligadas. A primeira delas é que crianças têm que brincar e estudar, não trabalhar nem precisar ganhar dinheiro para sustentar as suas famílias. Uma segunda questão se refere ao fato de o carreirismo ter chegado praticamente ao fim, no Brasil e no mundo. O mercado de trabalho hoje funciona com uma nova dinâmica em que o adulto muda o local do seu trabalho e, também, a própria natureza do trabalho durante a vida útil, para acompanhar as mudanças rápidas e avassaladoras do mundo. Assim, quando fixamos as crianças hoje em um futuro “de sucesso”, sob essa ótica enviesada do “que gera dinheiro”, poderá ser triste, problemático e muito frustrante caso o mercado exija adaptações que eles não possam fazer. Ou até mesmo se eles próprios vierem a desejar mudar de vida. Como fica?
Aliás, embora o ponto de partida disso tudo seja um desejo ou um talento especifico de cada uma das crianças que participam desses programas, seja de música ou de culinária, eles precisam ser ouvidos e respeitados no sentido de poderem variar ou, ainda, mudar de vida. Será que eles mesmos, junto com suas famílias, terão o direito de mudar o rumo de suas vidas enquanto ocupam o lugar de quem traz dinheiro, riqueza e conforto para sua família? Acho difícil que as crianças possam ser autônomas e sentirem-se donas de suas vidas quando crescerem, supondo-se que seriam donas de um sucesso perene, o que não se pode garantir.
Como terceira e última questão, vale lembrar que somos todos seres que se constituem por milhões de fatores combinados. Numa determinada fase da vida, cada um desses fatores aparece com maior destaque em detrimento de outros e assim vai. Portanto, que um adulto seja cantor ou cozinheiro e que possa, ainda, tomar banho de rio, colecionar selos, pintar quadros nas horas vagas etc. é compreensível. E é bom. No entanto, será que crianças cantoras ou com os melhores “dotes de mestre cuca”, na cozinha, poderão desenvolver outras dimensões de sua individualidade, além da frequência exigida à escola, para que tenham uma vida com oportunidades diversificadas? Para se conhecerem melhor? Para conhecerem melhor as amplas possibilidades do mundo em que vivem?
Esse é um dos nossos medos mais fortes. Medo de que os adultos de referência dessas crianças tenham nelas, desde cedo, o seu “muro de arrimo”, o seu apoio e sua segurança, quando deveria ser exatamente o oposto. Os pais é que devem mostrar o mundo e as diversas possibilidades da vida aos filhos, não o contrário. Essa inversão tende a ser limitadora e traumática. Cabe aos adultos proteger, cuidar e educar com amor, ser mais amigo e menos o empresário de suas crianças.
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*Maria Inês de C.Delorme, professora doutora do Departamento de Estudos da Infância da UERJ e uma das responsáveis pelo blog: www.papodepracinha.com.br. Email de contato: delormemic@gmail.com

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